Capítulo 5, Parte II: "Negação"

Paraiso

Uma luz tênue acariciou o rosto de Anami enquanto ela esticava seu corpo com alegria. Sentia-se um pouco apática e confusa. As palavras trocadas no dia anterior com Orwell a tinham afetado muito, embora ela as considerasse insignificantes. Estava perplexa e um tanto deprimida.

Ela olhou em volta e se deparou com uma grande sala, com uma cama de dossel em que estava deitada, uma poltrona, uma cômoda com espelho e banquinho, um cabideiro, um tapete e um urinol metálico esmaltado.

Com o nariz enrugado, Anami se levantou, pronta para abrir a porta discretamente e olhar através de uma fresta para saber onde estava, mas ao passar pela cômoda decidiu sentar no banquinho para primeiro ajeitar o penteado e recompor-se enquanto refletia sobre como agir agora. Qual foi sua surpresa quando, ao invés da gorducha Gonu de cauda peluda de cor castanha, orelhas de lebre e cabelo vermelho encaracolado, viu diante de si uma magra Íris de uma cor azul pálida, sem cauda, com orelhas pontudas e salientes muito finas e cabelos loiros, lisos e muito longos. Quase teve uma parada cardíaca! Assustada e com medo, ela sentou no banco e começou a tossir artificialmente e do modo mais forçado e ultrajante que conseguia, porque uma vez tinha lido um e-mail que explicava que fazendo isso, tossindo, provocava contrações musculares intensas muito eficazes na interrupção voluntária de uma parada cardíaca. Tal foi seu choque!

- Então, então... Não foi tudo um sonho! –Comentou em voz ligeiramente alta, com o nariz parecendo inteiramente uma uva passa e já meio chorando– Não pode ser, deve ter sido um sonho, –Continuou insistindo para si– O rapto do meu irmã Ninse, o sepultamento, Orwell, Lamaria... Tudo era verdade, então... Horror! Não, não poderia ter sido verdade. Tudo é um sonho muito vívido do qual eu ainda não despertei. Anami, acorde, vamos! –Disse, meio desesperada, ainda não confiando no que dizia para si mesma–

Anami desejou levantar e sair correndo do local, como se assim fazendo pudesse escapar de sua situação, mas quando fez isso muito impulsivamente uma ligeira tontura a dominou e obrigou a sentar-se novamente para evitar cair no chão imediatamente, permanecendo cega e à beira da inconsciência por alguns segundos.

Anami, frustrada e desesperada, começou a soluçar. cruzando os braços sobre a cômoda, curvando-se e apoiando a cabeça sobre ela. Em momentos como este gostaria de ser uma avestruz. Soluçando e ainda frustrada, reviveu em sua memória tudo o que tinha acontecido nos últimos meses, especialmente desde esteve na casa de Lamaria com Orwel, apoiando-a e dando-lhe assistência. Orwell... Este ser tão estranho que constantemente vivia dizendo coisas muito raras e tendo estranhas visões da realidade que se tornavam às vezes tão lógicas que ela ficava refletindo sobre elas por muitíssimos dias.

- O que foi que você disse ontem? Não consigo lembrar nada, apenas sei que não gostei e me senti e continuo me sentindo um pouco zangado com ele... Oh, sim! Disse que sou uma viciada ... Que absurdo! Tudo isso é uma loucura! Não pode ser verdade. É impossível. Eu tenho que estar sonhando ou sim... –E tentou convencer a si mesma–

Como gostaria de escapar da realidade agora!
Anami levantou o rosto umedecido e olhou no espelho, tentando reconhecer algo de si nele. Suas emoções eram desencontradas. Por um lado, sentia rejeição e condenação extremas diante da imagem que via refletida. Era um sentimento de repulsa e desprezo muito instintivo e visceral, acompanhado de muita raiva.

Por outro lado, para ser verdadeiramente honesta consigo, ela tinha de admitir que não havia nada errado com a mudança e que sua imagem nova era muito mais luminosa, harmoniosa e clara. Como é que podia, então, rejeitá-la? Por que se sentia em pé de guerra? Para Anami isso era totalmente incompreensível, como tudo o que estava acontecendo... Ela se sentia tal como um personagem fictício em um jogo de computador a funcionar por um capricho de alguém pirado.

Enquanto Anami permaneceu absorta em seus pensamentos, Lamaria penetrou na sala.

- Que bom você ter se levantado. Temíamos que o estresse emocional pelo qual você está passando a tivesse derrubado completamente. Ontem à noite você nos deu a impressão de que já estava no limite e não suportava mais –Comentou Lamaria–

- E é verdade que não agüento mais! –Disse Anami virando-se para ela com olhos intumescidos e inchados por ter chorado tanto–

- Oh, não! Não... Não fique triste meu amor, muito depressa você vai descobrir a beleza de tudo isso. Venha, deixe-me penteá-la! –E enquanto dizia isso, Lamaria sacou uma grande escova de madeira que estava sobre a cômoda e começou a pentear os cabelos de Anami–

Anami fechou os olhos permitindo-se sentir um formigamento muito agradável e relaxante em sua cabeça, pela suave massagem que Lamaria estava fazendo ao penteá-la o mais delicadamente que podia.

E assim, como um cachorrinho pequeno, Anami começou a afundar em um estado agradável, até que sua mente despertou bruscamente após um ligeiro toque das cerdas da escova na sua orelha direita.

- Não, é melhor que não me penteies –Disse rudemente afastando-a, enquanto desviava a cabeça da mesma maneira rude e lhe arrancava a escova da mão–

- Por que não? Pensei que estava gostando e ajudando a relaxar.

- Mas meus ouvidos... Eles são tão finos e frágeis...

- O quê? Não quer que eu te penteie os ouvidos? –Perguntou, surpresa, Lamaria–

- Só me faltava agora rachassem e começassem a sangrar gotas de sangue sabe-se lá de que cor: preto, roxo, verde ou fluorescente... –Respondeu Anami, enojada–

- Vermelho

- O quê?

- Vermelho. Nosso sangue é vermelho –Disse, em tom cômico, Lamaria–

- Pelo menos ainda tenho algo normal. -Anami respondeu, para mostrar clara e abertamente sua frustração–

- Tudo em você é normal. A única diferença é que antes você se via diferente e agora acredita que é de outro jeito. Mas, na realidade você é exatamente a mesma. Tudo o que mudou é que agora você vê mais partes de si mesma que antes não via. -Explicou Lamaria, depois de recuperar a escova–

- O que eu não via antes? O que eu não vejo agora é a minha cauda bonita e sexy! –Disse Anami, frustrada–

Lamaria deu um meio sorriso, fazendo uma careta através do espelho, como se dissesse: "Veja, assim é a vida" e com a escova de cabelos em mãos começou a penteá-la novamente.

- Não se preocupe. Nossas orelhas não são tão frágeis como parecem. Sim, elas são finas, quase transparentes, mas são feitas de tecido cartilaginoso mais forte do que muitas outras partes do nosso corpo. Não tenha medo, relaxe e aproveite –Disse isso tanto amor e ternura que Anami foi começando a se dar ao luxo de reviver novamente a agradável sensação de ser mimada–

Uma vez relaxada e descansada, Anami abriu seu coração completamente a Lamaria e pôde expressar seus sentimentos:

- Ah, eu adoraria ir para a cama dormir e não acordar mais ou acordar horas depois para constatar com surpresa que nada do que aconteceu e está acontecendo é real. Quem dera nada isso nunca tivesse acontecido. Orwell e você dizem que agora eu sou mais sábia, mas eu preferia ser como antes, quando era menos inteligente. A gente vive melhor quando nada sabemos. Pelo menos, antes eu me sentia feliz. Agora, no entanto, sinto como se estivesse em um pesadelo e eu me pergunto... Para que serve, então, ser mais sábia? Eu pensei que a sabedoria trazia felicidade, não a removia...
Oh Lamaria! Por que tudo é tão complicado? Eu não gosto de estar desperta. Eu quero voltar a dormir. Ir para a cama, entrar nela, ir dormir e desaparecem...

- Meu amor... –Começou a responder Lamaria– Por que duvidar de si mesmo? Por que lutar contra a maré, contra a própria vida? Você segue o ritmo natural da vida. Mais rápido do que muitos, mais lentamente do que outros... Mas o ritmo de vida, que Sat, o Senhor Supremo Verdadeiro, te presenteou... –Ela falou bem macia, suave e docemente– O problema é que quando um conhecimento é aprendido, sempre vem acompanhado por um poder. Agora, certamente você é mais sábia e, portanto, há mais força, mais poder dentro de você. A próxima questão seria saber se você tem controle sobre a força interior que recentemente acumulou, porque o em geral acontece é simplesmente que a princípio não sabemos como controlar com êxito. Só com tempo, com atenção e energia extras podemos ser gradualmente treinados a manter o poder sob controle e dirigi-lo para onde se quiser. E sim, isso é o que acontece com você, meu bem: você não controla essa grande força, e ao invés de canalizá-la em um estado de sabedoria e emoção sublimes, está a desperdiçá-la, atirando para todos os lados e especialmente por esse motivo atrai a depressão e o naufrágio de seu próprio navio...

Anami estava se sentindo desanimada e não conseguia mudar esse sentimento. De certo modo, podia entender o que Lamaria lhe dizia, mas em outro sentido, não compreendia nada. Conseguia entender suas palavras, não o que elas significavam. E não via nenhum relacionamento delas com sua pessoa, porque Anami estava em um estado tão negativo e seus pensamentos eram tão desalentadores, que apesar de ouvir e ter a chave da saída de seu estado emocional na mão, ficava girando e girando sobre si mesma, lamentando-se movida por uma vaidade excessiva não podia ver.

Lamaria acabou percebendo que falar tanto com Anami não parecia mudar o seu estado e que não a ouvia realmente nem podia seguir o seu conselho, decidiu oferecer-lhe maconha para adormecê-la, achando que assim esta poderia passar pelo menos um bom momento.

Anami não soube como responder e o que se seguiu foram cerca de uns dois minutos de um silêncio desconfortável.

- Quer um pouco? Vai te ajudar a relaxar e se sentir bem –Voltou a oferecer Lamaria, com um largo sorriso e um cigarro sem acender na sua mão esquerda, recém retirado do bolso de sua saia longa–
Anami estava insegura sobre como responder, além de manter seu nariz enrugado. Sua mente recordou a conversa rápida travada com Orwell na noite passada sobre as diversas atitudes ou "jogos" que davam à Lamaria aquela sua energia magnética muito especial, mas que, de acordo com Orwell, realmente a estavam atrasando em seu caminho para a sabedoria. Assim como um peixe preso em uma armadilha de rede que pode ir além do espaço que a rede abrange. Anami ainda não entendia bem o que ele queria dizer e continuava a sentir-se ofendida com ele por chamá-la de "viciada", mas não conseguia evitar um sentimento de respeito e alguma confiança em Orwell, uma vez que sempre que ele falava o fazia com uma sabedoria que ela tinha de esforçar-se ainda agora para captar.

Anami, portanto, não iria responder impensadamente. Sua mente imediatamente disse "sim" e a encorajou a estender a mão e aceitar a maconha, mas achou melhor refletir antes porque a experiência lhe sugeria que todas as coisas sobre as quais falava Orwell mereciam, pelo menos, um pouco de reflexão. E isto porque ele nunca falava palavras vazias...

- Ah! Não é justo! Porque me falou tão duramente Orwell sobre o que faz Lamaria? –Ela pensou– Agora, eu não posso aceitar. Se eu aceitar, eu me sentirei mal, pensando que há algo que eu não estou fazendo de certo ou bom para mim, embora eu não tenha idéia do por que ou o quê... E eu queria muito irradiar esta energia que irradia Lamaria... Que maçada! Por que esse cara não calou a boca?

Anami contorceu o nariz extremamente enquanto pensava.

- O que significa isso? O que é isso? Quer dizer “não”? Vamos, anda, não seja chata, aproveita a vida! No total, são apenas quatro dias –Pediu e incentivou Lamaria, insidiosamente, com um largo sorriso no rosto–

Este breve comentário foi a gota de água que Anami precisava para se decidir sobre o assunto. Lamaria falou de aproveitar a vida, mas ela estava super-convencida de que Lamaria não tinha idéia do que era realmente ser feliz, a felicidade verdadeira, profunda, constante e eterna, a felicidade interna não estimulada pela ação , palavra, ou algo de bom que vem de fora de si mesmo. Por outro lado, Orwell parecia possuí-la e Anami percebera isso quando olhara no fundo dos olhos dele.

- Não obrigado, eu não quero coisa alguma –Respondeu suavemente–

- Por que não? Venha! Você vai ver como ficaremos bem. Não seja chata.

- Eu disse que não quero, obrigado –Anami respondeu com muita firmeza desta vez e segura de si mesma, enquanto mirava a amiga com olhares assassinos–

- Okay, okay. Não é grande coisa. Eu só queria te animar um pouco –Disse Lamaria, na defensiva, e ergueu as mãos como um prisioneiro de um filme de faroeste–

- E eu agradeço por isso que você fez –Disse Anami muito animada e eletrizada. E assim se re-conectou com a alegria inata de ter tomado a decisão certa com firmeza e segurança, mudando completamente de humor–

Anami fez em pensamento uma promessa firme de que, a partir de agora, testaria a sua auto-disciplina tanto quanto possível, seguindo o caminho que Orwell prosseguia mostrando para ela a cada dia. Queria se certificar de que realmente era o caminho mais bem sucedido e se funcionava. E para fumar teria tempo mais tarde, se então lhe parecesse o correto a fazer.

- Você quer ficar sozinha? –Perguntou, muito discretamente, Lamaria–

- Não. Eu preferiria sair para o pátio e comer alguma coisa com você e Orwell... Ele ainda está aqui? –Anami perguntou, com um grande sentimento de amor e respeito por ele–

- Sim, ainda. Venha, eu preparei uma deliciosa paella vegetariana e um bolo de chocolate que não leva ovo.

- Ótimo! Porque eu tenho muita fome...

Uma vez no pátio Anami encontrou Orwell sentado em uma cadeira confortável.

- Eu tenho algo a dizer, Orwell.

- Sim, eu sei. Agora é a hora de uma nova pesquisa. –Orwell respondeu sem ela ter tido tempo para terminar–

- Oh... Esqueci-me! –Expressou Anami, levando a mão à cabeça e tornando o rosto exasperado– Você sempre sabe o que eu penso antes mesmo de eu pensar.

Orwell respondeu com um simples gesto facial cheio de cumplicidade, inocência e malícia.

- Sim, eu não quero permanecer por mais tempo aqui. Eu vou adentrar o Circo do Sasta e encontrar o único ícone existente de Sat, o Supremo Senhor Verdadeiro.

- Fico feliz em ver que você já tem mais energia e tira proveito dela para continuar sua pesquisa –Disse Orwell, de uma forma muito paternal– Entre hoje e amanhã prepararemos a bagagem que precisam para poderem prosseguir.

- Eu poder? O que quer dizer com eu poder? –Anami perguntou, algo temerosa e confusa– Você não vem? Você não pode faltar! Não me deixe sozinha... Você tem que vir!

- Não, eu vou deixá-la sozinha. Lamaria vai com você e um de seus amigos. Eu já disse que sempre vou estar muito perto de você, seguindo seus passos, mas que é você quem tem de dá-los.

- Tá certo, você pode expressar isso como quiser, mas a verdade é que está sempre se retirando e deixando-me sozinha e isolada. É por causa daquelas vozes que antes de eu sair de minha casa me disseram que só poderia fazer a viagem sozinha?

- Se assim fosse, eu não teria dito "poderem" –Respondeu Orwell–

- Tenho de levar isso como uma afronta pessoal? –Comentou Lamaria, aparecendo naquele momento com uma paella grande em suas mãos– Será que por um passe de mágica me tornei uma mulher invisível? –Perguntou diretamente a Anami–

- Não, não é isso. Bem... Bem... –Balbuciou esta última–

- É que ela está começando a dedicar a mim certo carinho, mas não acredita inteiramente no que eu digo e sente medo que eu desapareça –Disse Orwell, segurando-a muito delicadamente e levantando seu queixo para incentivá-la a olhar para ele diretamente nos olhos e provar o imenso amor e sinceridade que havia em tudo o que ele dizia e sentia– Sim, Anami, vou manter-me perto todo o caminho até que você encontre e resgate a sua irmã gêmea, Mani. Embora nem sempre você possa me ver, eu estarei vendo você.

Anami sentiu um calor infinito em todo o seu ser e com nova força e coragem teve um grande desejo de recostar-se nos ombros de Orwell e dar-lhe um abraço. “Autocontrole” ouviu em sua mente e se conteve, mas não sem grande esforço.

Após terminar de comer e tomar um par de horas com a organização da viagem, Anami foi para seu quarto descansar um pouco. Sentou-se na cama na posição de lótus, com as pernas dobradas e cruzadas sobre elas mesmas de modo que cada pé se apoiava na coxa da perna oposta, mantendo as costas retas e ligeiramente recostadas na parede. Uma vez descontraída, ela se sentiu meio transportada.

De repente, Anami se desdobrou. Sim, havia duas Anamis idênticas sentadas na mesma posição e com a mesma roupa, uma em frente a outra, como se um espelho houvesse entre ambas, embora não houvesse. Ambas foram elevadas a um pé da cama, flutuando no ar, levitando. Mas não foi isso o que mais surpreendeu Anami. Ela estava surpresa ao ver-se duplicada, em outra versão de si mesma, porque se comparando com a outra Anami, percebia que era ela, sim, mas com uma cara muito mais dura, de sexo masculino, e muito mais escura. Como se fosse ela mesma, mas muito mais suja e com raiva.

Foi um impacto tremendo na Anami ver-se mais feia do que já se considerava e não me refiro a aparência física da tribo Iris em relação a Gonu, uma vez que Anami estava começando a se acostumar e apreciar o seu novo visual. Eu me refiro ao fato de encontrar-se diante da mesma Iris que ela via todas as manhãs no espelho, mas muito mais feia do que o normal de feiúra que via todos os dias quando se olhava no espelho.

Este estado de choque e surpresa de ser muito mais feia e “suja” do que se julgava foi o que a fez sair daquele estado de percepção especial e voltar a estar sozinha, sentada na cama em posição de lótus, ouvindo ao longe o som de uma gaita de foles vindo do nada e que já devia estar lá enquanto ela olhava para si mesma e para sua duplicata - mas Anami não percebera isso na época.

Com nariz enrugado de novo, Anami quebrou a quietude de seu corpo virando a cabeça e olhando em volta tentou compreender o que tinha acontecido. O ato único e simples de virar a cabeça já era um esforço enorme. Para fazer isso, tinha que concentrar toda a sua atenção sobre o movimento e com essa energia extra, e sem poder se mexer livremente, girou à duras penas sua muito pesada cabeça, que nem parecia pertencer a ela mesma.

Anami se manteve na mesma posição por alguns minutos tentando pensar sobre o que aconteceu sem chegar a qualquer resposta concreta, porque não conseguia descobrir qual das Anamis era realmente ela e qual era a outra diante dela. Se fosse a outra, como era possível ver-se do lado de fora, com olhos diferentes? E se ela era ela mesma, afinal de contas, quem seria era aquele outro ser idêntico a si mesmo e refletido em uma espécie de espelho inexistente, e que também sentia como se fosse ela mesma? Anami assistia tudo dentro de uma das duas Anamis confrontadas, mas ao mesmo tempo observava o que elas duas viam fora. Da mesma maneira, ela sentia a ambas, como se fizessem parte do mesmo ser.

Anami começou a ficar com raiva de si mesma com este tipo de trava-língua mental em que se metera, e aí decidiu voltar para onde estavam Orwell e Lamaria. Iria limpar sua mente para não acreditar que estava começando a enlouquecer ou já havia enlouquecido.

Quando ela entrou na sala abruptamente, devido ao excesso de energia que acumulara mesmo sem ter consciência disso, Orwell, Jisto e Lamaria viraram juntos na direção dela.

- Oh, vejo que o tanque já está abastecido com gasolina –Tornou Orwell–

- E com essa que eu tenho que viajar? Como farei para pará-a quando meter o pé no acelerador? Atropela-nos de uma forma que a gente se sente violentado! –Perguntou Jisto, gesticulando de modo muito grosseiro e desagradável–

Lamaria percebeu o desconforto sentido por Anami e por sentir pena dela tentou amenizar as coisas:

- Não é tanque, nem vai violar nem atropelar. Esta é Anami, minha grande amiga, e estou muito feliz por estar viajando com ela se ela me deixa ir com ela. Se você não quiser vir, ou se você não gosta dela –Lamaria disse, enquanto olhava Jisto de forma muito agressiva– não tem que fazê-lo. Eu não me importo se Orwell aprova ou não. Não há necessidade de qualquer macho ao nosso lado! –inalizou, demonstrando muito desprezo–

Anami estava desconfortável. Ela não sabia onde se meter ou o que fizera para provocar tudo isso. Ela tinha acabado de abrir a porta e apenas entrado na sala. Nem mesmo uma única palavra havia dito.

- Anami, vem, senta aqui –Orwell sugeriu, apontando um largo espaço na área de assento em que estava–
Anami aproximou-se dele, um pouco insegura, e franzindo um pouquinho o nariz e acomodou-se muito modestamente.

- Anami, esse cabra é Jisto. Ele vai acompanhar vocês durante o percurso –Anunciou Lamaria enquanto Jisto se levantava de sua poltrona e agitava as mãos num gesto de paz e amizade– E não se preocupe, embora pareça um bode bravo é realmente um tonto –Finalizou, mostrando a língua desafiadoramente para Jisto–

Jisto não conseguiu ficar bravo com a atitude de Lamaria, que falando assim de forma tão humorística desarmou a tensão criada e todos eles sorriram.

Ainda assim, Anami não achou muita graça na idéia de começar com Jisto viagem de aventura tão difícil para as suas emoções e por causa da gravidade do caso e das possíveis conseqüências se não conseguissem cumprir e superar as provas que tinham diante de si para resgatar sua louca e deformada irmã gêmea, Mani.

Uma onda de nostalgia percorreu Anami. E então se sentiu mal por não ser capaz de se lembrar do rosto de sua irmã. Sim, recordava muitas e muitas cenas diferentes; e conversas, momentos compartilhados juntas e, acima de tudo, a censura, abusos e desprezo de sua parte para com Mani. Mas Anami não podia ver, mesmo se você fechasse os olhos e colocasse seu esforço total nisso, era o rosto da sua irmã, o seu aspecto físico. Claro, tão pouca atenção lhe dera ao longo dos anos...

Quis justificar-se por ser Mani fisicamente deformada e mente normalmente se lembrar de forma mais clara das lembranças harmoniosas e agradáveis, em detrimento da imagem de um ser completamente feio, horrível como a irmã gêmea Mani, um flagelo não só para Anami e sua família mas para todas as pessoas.

Um sonoro arranhar de garganta feito propositalmente por Orwell tirou Anami de seu devaneio. Ela abriu os olhos da cor de um caramelo e viu à sua frente um Jisto muito mais inseguro do que se tinha mostrado até então. Ele estava a seus pés, o rosto completamente vermelho e estendia a mão trêmula como a aguardar uma resposta. De vez em quando olhava de esguelha para Orwell e Lamaria procurando uma sugestão sobre como lidar com uma Anami que parecia ignorá-lo completamente.

Anami imediatamente se levantou e chocou sua mão com a dele, numa agitação vigorosa.

- Encantada, Jisto. Estou Anami –Respondeu uma sorridente Anami, como se aquele fosse o segundo primeiro encontro de suas vidas–

Uma vez que todos retornaram aos seus lugares, Anami ficou livre para observar um pouco mais dele. Como eles estavam para viajar juntos, o melhor era conhecer o mais possível a respeito de seus companheiros.

Quanto mais o olhava, mais tinha a sensação de que já o tinha visto antes.

- Talvez tenha sido numa das muitas noites em que ele veio quase em segredo para se divertir na cama com Lamaria - Anami ponderou consigo mesma–

Jisto era um Iris que media cinco centímetros mais do que o normal entre os de sua raça. Cinco centímetros para nós podem parecer poucos, mas para um Íris que no máximo pode medir um metro e vinte de altura, cinco centímetros podem significar que ele se sobressaia muito perante todos os demais.

Jisto tinha cerca de 27 anos e a cor de sua pele, como a de todos os membros da tribo Íris, era um azul muito suave. Seus ouvidos, como aqueles que Anami agora tinha, eram pontiagudos, projetados e muito, muito finos.

Tudo nele era muito magro e fino: mãos, pés, rosto, seu corpo... Seus cabelos, como os de Lamaria e de todos os Iris eram loiros numa cor dourada suave e muito longos, até quase a altura das nádegas. Jisto os mantinha presos num coque enrolado por uma comprida lasca de madeira.

Vestia-se de modo fino, elegante e um pouco hippie. Ele usava um casaco de linho branco com uma camisa de cetim amarelo-claro cheia de pequenos pontos verdes. Acompanhava o traje com as sandálias de tiras amarradas até a metade das panturrilhas, num tom de jasmim verde, verde vivo...

Anami estava observando-o atentamente. Durante quase todo o tempo que estavam juntos, Jisto tinha a mão direita no bolso da calça. Anami teve a impressão de que ele estava sempre acariciando ou aquecendo o membro ou pêlos pubianos. Além disso, várias vezes Anami "pegou" Lamaria e Jisto trocando insinuações sexuais.

Depois do jantar com os quatro juntos, Anami se levantou para ir ao seu quarto e deitar. Jisto deixou quase no mesmo instante o salão para ir ao banheiro e quando se esbarraram no caminho, perguntou:

- É você que me rejeita tanto quanto eu o sinto ou sou eu que me sinto rejeitado e por isso te rejeito também?

Anami estava completamente fora de ação. Claro estava que ambos sentiam uma espécie de rejeição mútua, mas não esperava ouvir sobre essa questão de maneira tão aberta, direta e sincera.

- Você me desmontou agora –Disse Anami– Agora eu não vou ser capaz de dormir! –Acabou dizendo– Por que tornamos tão complicada a vida com perguntas como essa? –Ela se perguntou, com o semblante pesado, quando já estava sozinha em seu quarto–

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Tradução por:
Ananda (Rosemari Gonçalves)

Journalist and costume designer
E-mail: roseananda99@gmail.com

Blog: www.searanova.blogspot.com

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